terça-feira, 19 de novembro de 2013

Denise Stoklos e Marcel Marceau

Denise Stoklos e o mímico francês Marcel Marceau (1923-2007) na ocasião de um debate no Rio, em 1982


Em 1982 trabalhando para o jornal O Globo fui fotografar uma entrevista/conversa que seria feita pela atriz Denise Stoklos com o ator mímico francês Marcel Marceau. Ao me encontrar no saguão do hotel onde Marceau estava hospedado Denise me comentou que estava apreensiva e me pediu que fosse discreto ao fotografá-los. Eles haviam se distanciado alguns anos antes por conta de uma polêmica declaração de Denise sobre o trabalho do consagrado Marceau. Nessa época, Denise, uma jovem atriz de vanguarda, havia questionado alguns métodos do colega francês e deixaram de se falar por um tempo. Marceau nos recebeu em seu apartamento amável, mas contido, e logo se sentaram frente a frente com uma formalidade amigável . Ao longo da conversa foram se aproximando e em pouco tempo pareciam dois namorados reatando uma antiga relação. Com as mãos falavam com a mesma intensidade que suas palavras. Ali eu era um observador privilegiado de dois mestres da arte dramática numa peça íntima. Ficaram as fotos, a lembrança desse momento mágico e um texto escrito por Denise publicado no Globo e outro na Folha de São Paulo, muitos anos depois, que reproduzo aqui.


Texto da atriz Denise Stoklos
MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS
A performance-diamante
Rio, 1982

EM 1982, UM JORNAL do Rio promoveu um debate entre Marcel Marceau e mim. Ele era considerado o "melhor mímico do mundo"; já eu era recém-saída da escola de mímica em Londres. Marcel não precisava mais do que sorrir e encantar com um ou outro pequeno gesto de pantomima, mesmo sem a maquiagem e o figurino próprios do "Bip", seu personagem. Eu via tudo, magnetizada pelo controle de seu corpo, maestria das articulações, espasmos que delineiam o início e o fim de um movimento!
Quando falei, foi para contestar o método dele: a técnica da mímica descreve uma ação, não há interesse em criticá-la, e o que interessava a nós, que estávamos chegando, era o que o artista sentia ao narrar um acontecimento, a sua "postura política" sobre aquilo.
Não aconteceu nenhuma briga, até mesmo porque era evidente a diferença entre nós: ele fazia; nós, jovens, questionávamos. O tradutor maneirou a conversa para um tom pacífico, e tivemos uma troca de ideias agradável entre dois "performers" muito diferentes.
Para mim, o condutor da cena -o "mímico"- pretendia expressar algo que lhe tocava pessoal e coletivamente. Sua intenção começava desde o momento em que se percebia capaz de "reapresentar" uma cena recortada do "real", que lhe "atravessasse" a emoção e que ele apresentasse num "palco", como algo lúdico, de "jogo", conseguindo a permissão implícita do público para entrar em sua emoção.
Nessa passagem, com o público pensando "ah, é apenas teatro", abrem-se as comportas do humor, da reflexão, da memória, de tudo que expresse a natureza humana.
O mímico escolheu o que lhe toca profundamente para levar à cena, e por isso sabemos que a escolha significa um empreendimento novo a cada nova apresentação. É um estudo para atingir uma performance de diamante, isto é, com repercussão em cada aresta, com brilho em cada face, e o ritmo entre uso da face e da aresta será uma das constituições da performance.
E lá entrava eu: os estabelecimentos teatrais, que têm palco e plateia, sistemas de som e de luz, são eventualmente usados para formaturas, eventos de empresas no final do ano, premiações etc. São também alugados para peças "teatrais" que não contêm o que define o teatro: um compromisso com a evolução da humanidade; pelo contrário, disciplinam o público com preconceitos nas anedotas, julgamentos comportamentais nas tramas, reforço de algo já instalado na demonstração de uma "normalidade" da sociedade, tudo para propagar e garantir o poder ao Estado continuadamente, como um elemento de manutenção do status quo social.
À classe teatral fica a tarefa de não compactuar com a alimentação do que já está comprometido, do que já é alienante. O dramaturgo livre quer que o teatro se desvie desse processo falido, da pretensa autovalorização que acaba por propor mais e mais caminhos que negam uma vida livre.
O dramaturgo que se questiona procura um teatro que escolhe temas, textos, formatos e interpretações, funções teatrais que não estejam comprometidas com dados que permitem a corrupção, a covardia, a traição do ser humano.
O dramaturgo que preza o teatro em sua reunião sagrada, proposta pela teatro grego, em que um grupo se reúne para refletir sobre suas questões existenciais, busca antes de tudo propor uma possibilidade de nos organizarmos dentro de maior amor e maior liberdade.
O dramaturgo exerce seu trabalho sabendo que o teatro é um dos poucos lugares que ainda pode estar livre de anúncios comerciais ou de merchandising, ou de espionagem para manter as classes servis. O papel do dramaturgo, é, na base, acionar um motor turbinado de possibilidades novas, acrescentando pistões de atrito que gerem luminosos atalhos e mudanças de rumos e que pelo menos convide a todos a mudanças.
Acho que o Marcel Marceau não entendeu nada disso, por conta da diplomacia do tradutor... Mas hoje todo mundo que leu aqui entendeu. (Já me serve!)

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